"O trabalho voluntário de milhares de bombeiros representa uma gigantesca transferência de valor da sociedade para os plantadores de eucaliptos e a indústria da celulose."
Texto original:
https://www.publico.pt/2025/08/27/opiniao/opiniao/bombeiros-herois-escravos-2145117
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Todos os verões, os bombeiros voluntários são – e com razão – celebrados como heróis nacionais. São milhares de jovens e menos jovens dispostos a dar tudo, inclusive a própria vida, para defender comunidades inteiras contra os infernos de chamas que se tornaram a nossa realidade recorrente nos últimos anos.
Nas zonas rurais, onde a floresta domina, os bombeiros sempre tiveram um papel central na vida local. Representam uma instituição de solidariedade, camaradagem e socialização da juventude. O bar do quartel é, em muitas vilas, o ponto de encontro social mais importante. Muitos jovens aderem aos bombeiros quase como se fosse uma versão comunitária dos escuteiros.
Mas esta imagem idílica não deve ocultar uma realidade bem mais preocupante: o trabalho voluntário de milhares de bombeiros representa, na prática, uma gigantesca transferência de valor da sociedade para os grandes beneficiários do modelo florestal português – os plantadores de eucaliptos e a indústria da celulose.
É claro que múltiplos fatores explicam a catástrofe dos incêndios: a negligência histórica do interior, o despovoamento, a falta de ordenamento e as alterações climáticas. Contudo, não se pode desligar a frequência e ferocidade dos fogos da expansão das monoculturas florestais destinadas à produção de biomassa e papel. Hoje, mais de um terço do território nacional está ocupado por floresta – uma área quase quatro vezes superior à do início do século XIX. Se fossem florestas diversas, com carvalhos e outras espécies autóctones resistentes ao fogo, o problema seria muito menor. Mas, em vez disso, temos imensos “desertos verdes” de pinheiro e eucalipto – ecossistemas pobres em biodiversidade, que secam o solo e alimentam a propagação das chamas.
Embora grande parte da terra não pertença diretamente às celuloses, é inegável que a vasta mancha de eucaliptais resulta da lógica produtiva do setor. Este funciona como um oligopsónio, em que poucos compradores controlam por completo o mercado e asseguram a acumulação dos lucros. Foram ainda estas empresas que, através de intenso lobbying, incentivaram a plantação de eucalipto entre pequenos e médios proprietários, bem como junto das autoridades políticas locais e nacionais – com destaque para a figura de Cavaco Silva.
Se somarmos todos os custos deste modelo – em perdas económicas, danos ecológicos, problemas de saúde, gastos no combate aos fogos e custos da replantação – fica evidente que esta economia do chamado “petróleo verde” não é viável nem sustentável. Ainda assim, empresas como a Navigator e a Altri apresentaram em 2024 cerca de 400 milhões de euros de lucro aos seus acionistas. A fórmula é antiga: privatizam-se os lucros, socializam-se os custos. Os custos aparecem sob a forma de fogos recorrentes, desertificação, seca e destruição do território.
Entretanto, a indústria e os políticos têm-se comportado como a indústria do tabaco no século XX: negando a realidade, manipulando narrativas e travando qualquer regulação séria. No meio desta desresponsabilização, quem tem assumido, de forma quase gratuita, o peso de controlar as “externalidades” deste modelo são os bombeiros – sobretudo os voluntários que, no interior, arriscam tudo para proteger o que o capital devasta.
Perante o atual cenário, é urgente reconhecer os Bombeiros como a força de trabalho de-facto das empresas de celulose em Portugal. Trata-se de uma mão de obra altamente qualificada – ou que deveria sê-lo – exposta a riscos extremos, mas que continua sem salário digno, sem garantias sociais adequadas e com escassos direitos sindicais e coletivos. Recebendo muitas vezes abaixo do salário mínimo, esta realidade configura uma forma clara de superexploração.
Esta prática repete-se em toda a relação do capitalismo com o Meio Ambiente: a natureza – e, com ela, todos os que dela cuidam, por vocação ou por necessidade – é considerada um recurso gratuito, desprovido de valor, embora seja indispensável. É o que se conhece como “trabalho reprodutivo”: aquele cujo valor o capital captura sem remuneração, apesar de ser essencial para a manutenção das condições de vida e de produção. O conceito, popularizado pelas abordagens feministas, como no trabalho de Maria Mies, aplica-se sobretudo ao trabalho não pago das tarefas domésticas e de cuidado, bem como ao labor invisível de imigrantes e de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Raramente, porém, é aplicado a atividades vistas como “masculinas”, como a heroica missão de combater incêndios e cuidar da floresta. A reivindicação, no entanto, deve ser a mesma; reconhecer o devido valor da atividade económica.
Os quartéis, nesse sentido, são verdadeiras unidades de produção – as autênticas fábricas do papel – onde centenas de trabalhadores e trabalhadoras cumprem turnos exaustivos, inclusive noturnos. Encarar a realidade dessa forma não apenas reforça a legitimidade da organização coletiva e sindical dos bombeiros, como também fortalece a sua luta por salários dignos. Tais salários, aliás, deveriam ser financiados diretamente pelos lucros milionários da indústria da celulose e dos eucaliptais, e não pelos contribuintes através do Estado.
Além disso, reconhecer os bombeiros como trabalhadores centrais neste modelo produtivo coloca-os como aliados estratégicos da causa ecológica, na defesa de florestas diversas e resilientes. Um ambiente laboral mais seguro e a redução da carga de incêndios resultante seriam, assim, conquistas não apenas laborais, mas também ambientais e sociais.