Começou o novo ano académico, começaram os gritos pela cidade
de coimbrã. Vestido de capa preta os senhores doutores e as senhoras doutoras
desfilam pela cidade com os seus novos rebanhos de caloiros. Este período é um
novo começo para os novos estudantes, um período de transição na sua via, um
ano que servira como integração no universidade de Coimbra, um período cheio de
rituais e tradições chamada praxe.
A praxe consiste num conjunto de práticas que visam integrar os
novos estudantes na vida de estudante. Esta integração é uma parte vital para
grande parte dos estudantes recém-chegados, já que a sua inserção nas associações
estudantis é a maneira mais fácil – talvez a única – de reconstituir os seu
meio social neste novo ambiente. É a promessa de aceitação neste novo meio
social, um meio social académico fechado e com um status superior - mas também um
instrumento vital para a comunicação entre colegas de aula e uma infraestrutura
social importante – que leva á “escolha” estudantil de participar nestas
praticas.
Ao primeiro olhar esta praxe já parece bastante problemática.
Os recém-chegados são submetidos a um montão de rituais e praticas humiliantes.
A praxe é um instrumento não só de integração, mas principalmente um
hierarchisaçao de poder dentro da associaçao. A quererem fazer parte do meio académico,
os “caloiros” são submetidos ao poder dos “doutores” (qualquer estudante com mais
de 1 ano em Coimbra), e esta submissão é socializada pela obrigação de rituais simbólicos.
Estes rituais simbólicos constituem em práticas homofóbicas,
praticas sexistas/machistas, praticas sexualmente “transgressivas”, e praticas
fisicamente e psicologicamente humiliantes. Exemplos são a obrigação de
caloiros de ensenar actos sexuais com arvores ou outros objectos, encenar actos
sexuais homossexuais com os seus pares, cantar cantigas auto-humiliantes,
inferiorizantes e sexualizantes, fazer push-ups segundo as ordems dos doutores,
serem sujeitos a vários tipos de castigos individuais en collectivos pelos
mesmos, etc…
O exemplo das praticas sexistas são das mais obvias neste
contexto. Grupos de caloiras são obrigados a cantar canções altamente
sexualizadas e “vulgares” contradizem com as normas bastante conservadoras das
estudantes no dia-a-dia. Este tipo de gritaria so funciona como instrumento de
submissao porque a atitude cotidiana destas estudantes é totalmente contraria
aos gritos.
É claro que todos esses rituais se praticam dentro do espaço
publico, dentro da esfera publica académica, no seio da universidade, no meio
das pessoas conhecidas e desconhecidas que passam. Esta pratica dentro da
esfera publica tem a meu ver duas funções e mostra um terceiro facto. Primeiro
mostra que estas praticas fazem parte da esfera publica académica; utilizam as
normas dominantes e a sua simbologia da esfera publica (machista, conservadora
e hierachica) para legitimar os poderes hierárquicos entre doutores e caloiros.
O exemplo é a submissão e o constrangimento ao qual as jovens estudantes são confrontadas
a ter que gritar que “as da bio-quimica são conhecidas para foder melhor”, ao
mesmo tempo claramente serem excluídas dos doutores pelo facto da não
utilização de capa.
Alem disso são submetidos a uma serie de regras aplicáveis aos
caloiros, que evitem a sua própria integração por outros meios, como por exemplo a proibição de sair á noite sem a licença dos
doutores. praticada á seculos
Dentro deste contexto estas práticas de praxe parecem ser
totalmente contraditórias aos valores da universidade. A universidade, propõe-se
como uma instituição que defende a liberdade, inclusividade, o conhecimento, o
pensamento critico e a autoemancipação dos seus academicos. A praxe pelo outro
lado parece defender exatamente o oposto; sendo submissão, ignorância forçada,
hierarchia, e humiliação. Como é possível que rituais de integração parecem
exatamente contrários á própria instituição. A analyse Hegeliana – Que “o
espirito é o osso” - do Slavoj Zizek neste caso parece bastante aplicável.
Na sua obra “Parallax View”, no ultimo capitulo sob o titulo "bem vindo ao deserto da subcultura Americana", Zizek
discute a questão das fotografias de Abu Graib no Iraque. Estas foto’s de torturas fysicas e
psichologicas por pelos soldados Americanos e Britanicos geraram grande
animosidade quando encontraram seu caminho para os media. Tambem aqui aparecia
uma contradição: Enquanto os estados unidos tinham ido para a guerra em nome da
democracia, pela liberdade individual, contra a tortura e ditadura – as praticas
no terreno, na materialidade do seu dia-a-dia mostravam exatamente o contrario;
rituais de tortura e humilhação.
A reação dos estados unidos foi que a conduta dos soldados
Americanos eram “actos individuais criminosos e não refletiam os valores dos
estados unidos” – e que o facto da sua condenação publica pelo presidente
mostrava isso mesmo – já que numa ditadura estas praticas teriam sido
silenciadas. Zizek contesta esta posição, diz que o fenómeno não tinha sido
nada “individual” mas uma pratica bastante regular, silociosamente aceite e
incentivada - bem que oficialmente não regulada, duma forma á margem da lei,
como seu excesso complementar. (Boaventura Sousa santos utilizaria o termo da
linha abissal nas praticas coloniais)
Porventura, Zizek defende que este tipo rituais são exatamente
parte “dos valores americanos”, mas a sua parte subcultural, e que a integração
hierárquica dentro do modo de vida americano passa por este tipo de submissão publica
e psicológica. Ele vai buscar exatamente a ideia das praxes nas grandes
universidade Americanas, os rituais de iniciação de associações como a Skull
and Bones (do qua Bush fazia parte) para ilustrar este tipo de subcultura do
ocidente liberal.
A mesma logica pode aplicar á praxe conimbricense. Será que a
praxe não é “o osso” do espirito académico, a sua contradição dialetica, o seu
excesso perverso? Será que a praxe não é produto do status simbólico da
universidade de Coimbra na hierachia do poder. Será que a praxe não é a reflexão
estudantil da atitude e o poder da coletiva dos professores e instituçoes e associações
académicas nesta sociedade. Será que a praxe não é a consequência sob a superfície
de uma universidade excludente, elitista e não democrática?
Uma coisa é certa, não parece existir razão nenhuma para ter
orgulho destas tradições académicas - a não ser desde um ponto de vista para a própria
auto-afirmaçao dentro desto tipo de hierarchia. E também a proibição ou regulamentação
não vai ter grande efeito na logica por traz do fenómeno; como mostra o exemplo
de Abu Graib.