Se há alguma base cientifica para o mito neofascista da “substituição” — segundo o
qual imigrantes racializados estariam a “substituir” a “raça branca” por obra de uma
conspiração tramada por gente “woke”, políticos de esquerda, feministas, judeus ou
maçons —, essa base está, ironicamente, no próprio sistema económico que a
direita tanto defende: o capitalismo.
É hoje um consenso que a precariedade dos jovens — em termos de emprego,
salários e habitação — combinada com o enfraquecimento de serviços públicos
essenciais, como o SNS, tem sido um entrave significativo à constituição de família
e à decisão de ter filhos. Jovens em idade fértil emigram, constituem família fora de
Portugal. Para os que ficam, os contratos de trabalho, quase sempre a curto prazo,
impedem o planeamento a longo prazo. Isso afeta praticamente todas as camadas
do mercado laboral: desde os trabalhadores com salários mais baixos, que têm
dificuldade em sobreviver e pagar contas, até aos mais qualificados, onde a maioria
dos contratos de pós-doutoramento ou de investigação científica dura dois ou três
anos.
Na prática, uma parte considerável dos jovens só consegue ponderar ter filhos
quando, após o falecimento dos pais ou avós, herda algum património que lhes
permite finalmente alguma estabilidade — seja em termos de habitação, seja em
termos financeiros. É profundamente irónico que o capitalismo neoliberal, baseado
na ultra-competição, que supostamente reflete a “eficiência” e a “meritocracia” da
“seleção natural”, aliado à ideia da família burguesa como entidade estável de
gestão de património e reprodução de herdeiros, acabe por produzir uma realidade
em que só os filhos daqueles que herdam — frequentemente por morte prematura
dos pais, ou seja, justamente aqueles com menos longevidade e mais problemas de
saúde — conseguem, por sua vez, constituir família. Em termos neo-darwinistas, tão
valorizados em certos meios da direita, o “survival of the fittest” dá lugar à
procriação dos “menos aptos”.
Entretanto, os únicos que continuam a procriar — alimentando o pânico dessa
mesma extrema-direita pequeno-burguesa, como se viu na abjeta prática de
divulgar publicamente nomes de origem estrangeira — são, frequentemente, os
imigrantes mais pobres e racializados. Os nomes das crianças que Ventura e Matias
expuseram no Parlamento e nas redes sociais dificilmente evocariam origens
germânicas ou anglo-saxónicas. A razão destes terem uma natalidade maior é
simples: nestas camadas sociais, independentemente da origem étnica — tal como
acontecia com os pobres alentejanos ou minhotos que emigravam para as grandes
cidades ou para França —, a constituição de uma família burguesa nunca fez parte
do imaginário. A decisão de ter filhos não depende de cálculos racionais sobre se
será possível pagar o futuro ou os estudos das crianças, nem de ter casa própria ou
uma família estável. Depende antes de uma combinação de múltiplos outros fatores
— que os moralistas burgueses sempre classificaram como “baixas morais” da
plebe: comportamentos vistos como libertinagem, a suposta irracionalidade sexual
de jovens ou adultos com pouca educação sexual; ou, pelo contrário, decisões
racionais dentro de contextos de carência, como a necessidade de garantir
segurança social futura, ajuda na velhice, através dos filhos. Acrescem ainda
normas patriarcais, tradições ou imposições religiosas — como o velho
mandamento católico: “Ide e multiplicai-vos” —, ou até situações de violência
sexual.
É claro que muitas dessas crianças crescerão em condições difíceis, como sempre
aconteceu entre os mais pobres no capitalismo: famílias disfuncionais, alcoolismo,
problemas de saúde mental, pais ausentes por trabalharem em turnos ou por terem
dois empregos, mães solteiras cujos parceiros nunca assumiram a criança. Mas isso
pouco importa ao sistema: a procriação aqui é uma forma de acumulação primitiva
de capital. Trata-se da produção de mão de obra barata, da próxima geração de
trabalhadores superexplorados que sustentará a economia, sem direitos, com pouco
investimento público ou privado na educação, em escolas periféricas. Serão estes
jovens que, dentro de vinte anos, trabalharão nas obras, nas plataformas logísticas,
nos portos, nos Ubers e no retalho.
Voltamos, assim, ao capitalismo e à família burguesa. As desigualdades geradas
pela competição económica produzem efeitos sociais distintos em diferentes
camadas da sociedade. Entre a classe trabalhadora com alguns direitos — cuja
branquitude lhe confere o privilégio de emigrar legalmente para o Norte da Europa e
que aspira a alguma estabilidade de classe média —, observa-se uma drástica
diminuição da fertilidade. Essa classe com alguns direitos — direitos sociais cada
vez menos universais e mais transformados em privilégios ligados à nacionalidade,
à legalidade ou à condição racial — tende, assim, a desaparecer juntamente com
esses mesmos direitos, enquanto não superar o capitalismo. Já entre aqueles que
vivem nas margens da sociedade, devido ao racismo, à discriminação, à (semi-
)ilegalidade e à violência, é precisamente a ausência de perspetivas de futuro —
onde os filhos surgem como única forma de segurança social — que impulsiona a
decisão de ter filhos. E o capital agradece essa carne barata.
E então há solução?
É claro que nenhuma solução razoável virá da extrema-direita, que, na sua cruzada
contra a chamada “grande substituição”, procura privilegiar ainda mais os direitos
sociais de forma excludente aos cidadãos nacionais nativos, ao mesmo tempo que
pretende aprofundar a superexploração dos setores mais excluídos da classe
trabalhadora — nem mesmo em benefício da própria classe trabalhadora branca.
Como se demonstrou, essa estratégia apenas reforçará o mecanismo já em curso.
A única saída passa por garantir condições de trabalho e de vida dignas para todos,
de modo que os jovens possam decidir livremente se querem ou não ter filhos, sem
o peso de condicionantes económicas. Que não existam jovens com medo de ter
filhos por falta de habitação ou de emprego com direitos, nem mães que sintam
necessidade de ter filhos apenas para assegurar apoio na velhice. É igualmente
essencial garantir um SNS que funcione em condições, para que as mulheres não
tenham receio de dar à luz, bem como assegurar serviços públicos gratuitos —
creches, escolas, saúde — que apoiem o cuidado das crianças, independentemente
das condições socioeconómicas dos pais.
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