Friday, May 1, 2020

Um dia de trabalho essencial na pandemia


Á mais de um século o primeiro de maio é a data mais marcante para os socialistas em todo o mundo. O dia do trabalhador – ou melhor em inglês International Labour Day - foi instaurado pela Internacional Socialista em 1904, para assinalar a luta internacional pelos direitos do trabalhador. Os trabalhadores de todo o mundo eram chamados a manifestar-se pela jornada de trabalho de 8 horas. A luta pela redução da jornada de trabalho, foi sempre uma bandeira importante to movimento. Não só é uma reivindicação importante para combater o desemprego, mas também assinala que os direitos do trabalho são os direitos á vida: a ideia era 8 horas de trabalho, 8 de sono e 8 de tempo livre para socializar, relaxar, estudar, arte, etc…  Passados 116 anos de aumentos de produtividade, ainda muitos não chegaram a esse patamar e estamos a regredir. É importante sempre repetir que o 1º de maio não é só um dia livre onde celebramos as conquistas sociais do passado, é principalmente um dia de luta, manifestação e unidade anticapitalista. Este primeiro de Maio será diferente. A pandemia da covid19 parou as sociedades, manifestações estão condicionadas pelas precauções de saúde. O convívio tradicional está proibido. A maioria de nós terá de passar o dia do trabalhador em casa. Motivo para algumas considerações sobre a defesa dos direitos do trabalho e a resistência anticapitalista no contexto da pandemia.
Pandemias e doenças infeciosas são eventos quase inevitáveis ​​e recorrentes na história da humanidade, mas os sistemas socioeconómicos têm efeitos determinantes no desenvolvimento e nas consequências sociais dessas pandemias. O capitalismo global produziu e galvanizou o impacto do vírus. Distingo aqui 4 razões: 1. A globalização capitalista comprimiu o tempo e o espaço de tal forma que dinheiro e bens, mas também passageiros e vírus, dão a volta ao mundo de forma muito mais rápida que em qualquer outra época da história do planeta: todas as barreiras sociais e naturais - das fronteiras aos oceanos – deixaram de existir. 2. A indústria capitalista de carnes – que produz alimentos baratos para trabalhadores baratos – é comummente ligada ao surto de pandemias: Os espaços fechados e não-saudáveis ​​onde se concentram milhares de animais são incubadoras potentes para vírus que usam essa cadeia de transmissão para saltar do mundo animal para o humano. 3. Os cortes neoliberais na saúde reduziram drasticamente a infraestrutura e o pessoal disponível para combater possíveis pandemias. Uma das necessidades básicas para combater pandemias é a capacidade, em termos de leitos hospitalares, e estoques estratégicos de material higiênico básico, como máscaras, desinfetantes e reagentes para testes - todos que foram drasticamente reduzidos nos últimos vinte anos, apesar do enorme crescimento da população mundial e da riqueza financeira. 4. A privatização da pesquisa e desenvolvimento farmacêutico direciona investimentos para a invenção de novas substâncias químicas que tratam doenças que são financeiramente interessantes e evitam a pesquisa de possíveis efeitos curativos de produtos químicos sem direitos de propriedade intelectual para doenças direcionadas aos mais pobres e vulneráveis ​​do mundo. Outra consequência foi a quase-monopolização de reagentes para testes de covid19 pela multinacional farmacêutica suíça Roche.
A crise pandémica demonstrou-nos mais uma vez as debilidades do capitalismo, e das verdades neoliberais que nos foram ensinadas nos últimos 30 anos. A crise mostrou a impossibilidade de o mercado dar respostas; fora de Bolsonaro, poucos libertários lunáticos hoje defendem a não-ação do estado perante esta crise. Os serviços públicos de saúde reconquistaram o seu destaque para o bem comum, enquanto que os privados foram desmascarados por aquilo que são, especuladores que não se importam com a saúde. Vai ser difícil legitimar privatizações neste sector nos próximos anos, e o pessoal médico terá apoio social para exigir melhores condições nos próximos anos.
O combate á doença exigiu a paralisação quase completa da economia capitalista. A quarentena funcionou praticamente como uma greve social – muitas vezes imposta pelo estado – que afetou todos os sectores da sociedade. Esta paralisação e o subsequente colapso económico relembrou-nos do facto que a riqueza é fundamentalmente produzida pelos trabalhadores. O capital investido, o “empreenderismo criativo”, os gestores, a publicidade; tudo é completamente inútil sem a exploração do trabalho. A pandemia mostrou-nos também quem executa as tarefas essenciais na sociedade: são aqueles que não podem parar e tiveram de correr um risco de vida desconhecido para o bem comum: são eles os produtores de alimentos, as trabalhadoras no supermercado, são os trabalhadores na limpeza, o pessoal da logística e transportes e o pessoal médico. Muitas vezes esses trabalhadores essenciais são as pessoas que sofrem a maior exploração, que têm a maior precariedade e os piores salários. Muitas vezes também são os trabalhadores que sofrem as maiores opressões, a mulheres e trabalhadores racializados que sofrem além da exploração de sexismo e racismo.
São esses trabalhadores e trabalhadoras essenciais que merecem destaque neste primeiro de maio. A sua integração e luta é um dos maiores desafios contemporâneos do movimento dos trabalhadores; são dos sectores com menos tradição de sindicalização devido á sua grande precariedade. As velhas organizações sindicais tiveram – pelo menos até agora – grandes dificuldades para entrar nestes sectores. Mas são estes também os sectores estratégicos numa economia capitalista cada vez mais focada em serviços e produção just-in-time, e como tal estes sectores tem um poder potencial muito grande. Alguns sectores já descobriram esse poder; lembremos o impacto das lutas poderosas dos estivadores, camionistas de petróleo e enfermeiros em Portugal no ano passado. Será um processo pedagógico com muitas contradições e erros – devido á falta de tradições e organização – mas essencial para todos.
O reconhecimento das falhas do mercado livre, não nos trouxe necessariamente políticas para o bem comum; também ressuscitou o “socialismo dos ricos”, que está principalmente preocupado em encontrar um mega-ventilador para o sector financeiro e as grandes empresas. Alem disso, entre os vencedores dessa crise estarão os piores sectores da economia capitalista: as economias de plataforma - como Amazon, Uber e Glovo - as grandes superfícies e as grandes indústrias de alimentos. A crise e as quarentenas impostas fortaleceram suas posições, em vez de serem interrompidas, sua acumulação de capital disparou enquanto que suas alternativas em pequena escala, o pequeno comércio local dependente da interação direta com os clientes e o acesso limitado a novas tecnologias digitais sofrerá uma destruição do seu capital e terão enormes dificuldades para sobreviver. Se a ordem mundial capitalista não for contestada, muitas de suas tendências contemporâneas se fortalecerão ao longo desta crise. A única alternativa é a luta organizada! Saudações de um dia de trabalhador combativo!

Este texto foi escrito a convite do Jornal Mundus.