Friday, September 26, 2025

A Grande Substituição: raça, natalidade e capitalismo

Se há alguma base científica para o mito neofascista da “substituição” — segundo o qual imigrantes racializados estariam a “substituir” a “raça branca” por obra de uma conspiração tramada por gente “woke”, políticos de esquerda, feministas, judeus ou maçons —, essa base está, ironicamente, no próprio sistema económico que a direita tanto defende: o capitalismo.

É hoje um consenso que a precariedade dos jovens — em termos de emprego, salários e habitação —, combinada com o enfraquecimento de serviços públicos essenciais, como o SNS, tem sido um entrave significativo à constituição de família e à decisão de ter filhos. Jovens em idade fértil emigram e constituem família fora de Portugal. Para os que ficam, os contratos de trabalho, quase sempre a curto prazo, impedem o planeamento a longo prazo. Isso afeta praticamente todas as camadas do mercado laboral: desde os trabalhadores com salários mais baixos, que têm dificuldade em sobreviver e pagar contas, até aos mais qualificados, onde a maioria dos contratos de pós-doutoramento ou de investigação científica dura dois ou três anos.

Na prática, uma parte considerável dos jovens só consegue ponderar ter filhos quando, após o falecimento dos pais ou avós, herda algum património que lhes permite finalmente alguma estabilidade — seja em termos de habitação, seja em termos financeiros. É profundamente irónico que o capitalismo neoliberal, baseado na ultra-competição que supostamente reflete a “eficiência” e a “meritocracia” da “seleção natural”, aliado à ideia da família burguesa como entidade estável de gestão de património e reprodução de herdeiros, acabe por produzir uma realidade em que só os filhos daqueles que herdam — frequentemente por morte prematura dos pais, ou seja, justamente aqueles com menos longevidade e mais problemas de saúde — conseguem, por sua vez, constituir família. Em termos neo-darwinistas, tão valorizados em certos meios da direita, o “survival of the fittest” dá lugar à procriação dos “menos aptos”.

Entretanto, os únicos que continuam a procriar — alimentando o pânico dessa mesma extrema-direita pequeno-burguesa, como se viu na abjeta prática de divulgar publicamente nomes de origem estrangeira — são, frequentemente, os imigrantes mais pobres e racializados. Os nomes das crianças que Ventura e Matias expuseram no Parlamento e nas redes sociais dificilmente evocariam origens germânicas ou anglo-saxónicas. A razão destes terem uma natalidade maior é simples: nestas camadas sociais, independentemente da origem étnica — tal como acontecia com os pobres alentejanos ou minhotos que emigravam para as grandes cidades ou para França —, a constituição de uma família burguesa nunca fez parte do imaginário. A decisão de ter filhos não depende de cálculos racionais sobre se será possível pagar o futuro ou os estudos das crianças, nem de ter casa própria ou uma família estável. Depende antes de uma combinação de múltiplos outros fatores — que os moralistas burgueses sempre classificaram como “baixas morais” da plebe: comportamentos vistos como libertinagem, a suposta irracionalidade sexual de jovens ou adultos com pouca educação sexual; ou, pelo contrário, decisões racionais dentro de contextos de carência, como a necessidade de garantir segurança social futura, ajuda na velhice, através dos filhos. Acrescem ainda normas patriarcais, tradições ou imposições religiosas — como o velho mandamento católico “Ide e multiplicai-vos” — ou até situações de violência sexual.

É claro que muitas dessas crianças crescerão em condições difíceis, como sempre aconteceu entre os mais pobres no capitalismo: famílias disfuncionais, alcoolismo, problemas de saúde mental, pais ausentes por trabalharem em turnos ou por terem dois empregos, mães solteiras cujos parceiros nunca assumiram a criança. Mas isso pouco importa ao sistema: a procriação aqui é uma forma de acumulação primitiva de capital. Trata-se da produção de mão de obra barata, da próxima geração de trabalhadores superexplorados que sustentará a economia, sem direitos, com pouco investimento público ou privado na educação, em escolas periféricas. Serão estes jovens que, dentro de vinte anos, trabalharão nas obras, nas plataformas logísticas, nos portos, nos Ubers e no retalho.

Voltamos, assim, ao capitalismo e à família burguesa. As desigualdades geradas pela competição económica produzem efeitos sociais distintos em diferentes camadas da sociedade. Entre a classe trabalhadora com alguns direitos — cuja branquitude lhe confere o privilégio de emigrar legalmente para o Norte da Europa e que aspira a alguma estabilidade de classe média — observa-se uma drástica diminuição da fertilidade. Essa classe com alguns direitos — direitos sociais cada vez menos universais e mais transformados em privilégios ligados à nacionalidade, à legalidade ou à condição racial — tende, assim, a desaparecer juntamente com esses mesmos direitos, enquanto não superar o capitalismo. Já entre aqueles que vivem nas margens da sociedade, devido ao racismo, à discriminação, à (semi-)ilegalidade e à violência, é precisamente a ausência de perspetivas de futuro — onde os filhos surgem como única forma de segurança social — que impulsiona a decisão de ter filhos. E o capital agradece essa carne barata.

E então há solução? É claro que nenhuma solução razoável virá da extrema-direita, que, na sua cruzada contra a chamada “grande substituição”, procura privilegiar ainda mais os direitos sociais de forma excludente aos cidadãos nacionais nativos, ao mesmo tempo que pretende aprofundar a superexploração dos setores mais excluídos da classe trabalhadora — nem mesmo em benefício da própria classe trabalhadora branca. Como se demonstrou, essa estratégia apenas reforçará o mecanismo já em curso.

A única saída passa por garantir condições de trabalho e de vida dignas para todos, de modo que os jovens possam decidir livremente se querem ou não ter filhos, sem o peso de condicionantes económicas. Que não existam jovens com medo de ter filhos por falta de habitação ou de emprego com direitos, nem mães que sintam necessidade de ter filhos apenas para assegurar apoio na velhice. É igualmente essencial garantir um SNS que funcione em condições, para que as mulheres não tenham receio de dar à luz, bem como assegurar serviços públicos gratuitos — creches, escolas, saúde — que apoiem o cuidado das crianças, independentemente das condições socioeconómicas dos pais.